Bebês reborn estão em todo lugar ou é ilusão das redes sociais?
De fenômeno nas redes sociais a caso de agressão no mundo real, como a ascensão dos bebês reborn revela os perigos da superexposição digital, da intolerâ...

De fenômeno nas redes sociais a caso de agressão no mundo real, como a ascensão dos bebês reborn revela os perigos da superexposição digital, da intolerância e da distorção da realidade causada por bolhas virtuais Homem agride neném de quatro meses achando que era um bebê 'reborn' Bonecas hiper-realistas conhecidas como bebês reborn tomaram conta do imaginário popular nas últimas semanas — pelo menos, é o que indicam as redes sociais e a cobertura da mídia brasileira. Mas a viralização do fenômeno não se restringe ao universo digital. A repercussão crescente já inspira propostas legislativas no Congresso Nacional que pretendem restringir benefícios, como o atendimento preferencial, a quem leva os bonecos em locais públicos. E, mais preocupante, o assunto ultrapassou as fronteiras do debate simbólico e culminou em um episódio de violência real. Na semana passada, um homem de 36 anos foi preso em flagrante por agredir uma criança de 4 anos com um tapa, dentro de uma lanchonete em Belo Horizonte. O motivo: ele alegou ter confundido a criança com um bebê reborn e acreditou que os pais estariam usando o boneco para furar a fila. Preso em flagrante por lesão corporal, o agressor afirmou ter confundido a criança com um bebê reborn, achando que os pais estariam utilizando-se dela para furar a fila no estabelecimento. A criança chegou a ser levada ao hospital com inchaço atrás da orelha. Já o autor do ataque foi solto dois dias depois pela Justiça, que determinou a ele o pagamento de uma fiança no valor de três salários-mínimos. O caso acendeu um alerta entre especialistas: até que ponto um fenômeno amplificado nas redes sociais pode provocar distorções graves na percepção da realidade e incentivar comportamentos extremos? Realidade x ficção Para a pesquisadora Cínthia Demaria, doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), é preciso ter cautela, pois o mundo da internet não é exatamente o do espaço público, apesar de que existam intercessões entre ambos. "Essa interação entre virtual e real existe, não podemos ignorar. Cria-se uma realidade a partir daquilo que você compartilha, do que você pensa", afirma a psicóloga. "Me questiono, por exemplo, se esse fenômeno [dos bebês reborn] seria tão grande se não fosse a internet. É preciso se perguntar até que ponto isso é um discurso que existe. Não é algo que se sai na rua e se vê." Demaria aponta para a dimensão que as tendências das redes sociais têm tomado na difusão de conteúdo pela imprensa e por outros meios de comunicação de massa. A pesquisadora da UFMG acrescenta que esses trendings são também preferencialmente polêmicas. "É claro que ganha repercussão muito maior um assunto onde todo mundo tem opinião para dar. Isso, para a rede social, é muito importante: segue a lógica do engajamento. O assunto dá voz, é um palco", afirma. Essa lógica, impulsionada pelos algoritmos, reforça a formação de bolhas e cria a divisão dos usuários entre os que são "a favor" e aqueles que são "contrários". Isso, lembra ela, propicia a difusão do discurso de ódio, pois o debate nas plataformas virtuais cria a ilusão de que não haverá consequências para quem se valer dele. "Mas não é verdade. Essa agressão [a uma criança], por exemplo, mostra que, se o discurso na internet não tem consequências aparentemente tão evidenciadas, quando entramos no laço social, na relação com os outros, que é o que precisamos para viver, trocar e existir no mundo, há consequências, sim", argumenta. Sobre o fenômeno do bebê reborn ter tomado tantas proporções, Demaria aponta para a forma com que o assunto levanta questões como a percepção de que a mulher deve assumir o papel de mãe, além de objetificar a própria criança que, no caso das réplicas, é um "bebê ideal", ou seja, "não chora, não dá trabalho". "Os homens já jogavam RPG, os live action com bonecos – e não se fazia alvoroço", lembra a psicóloga. Bebês reborn fabricadas por artesã em Goiás Diomício Gomes/Jornal O Popular Impulsividade e extremismo Os dados sobre a popularização dos bebês reborn no Brasil ainda são escassos, mas, de acordo com o Google Trends, o país é o líder nas buscas pelo termo na internet. No entanto, depois de um pico no interesse dos usuários entre 18 e 24 de maio, o interesse arrefeceu – e voltou a níveis próximos do que havia antes. Por aqui, bonecos hiper-realistas existem desde os anos 1990. Mundialmente, segundo um relatório da Market Report Analytics, de 840 mil posts no TikTok com a tag #rebornbaby, apenas 2% são feitos por "pais" das réplicas. A consultoria aponta que o mercado dos reborns vem crescendo 8% ao ano, mas representa, com 200 mil dólares em vendas anuais, uma pequena parcela do setor de bonecas, que chega a 24 bilhões de dólares. Ainda segundo o relatório, 60% dos clientes dos reborn são adultos, entre eles adultos e idosos com doenças como Alzheimer – para os quais os bonecos hiper-realistas têm sido usados como terapia. Atuando em consultórios e clínicas há sete anos, o psiquiatra Vitor Hugo Stangler diz que só teve contato uma vez com uma paciente que tinha um bebê reborn, justamente para tratamento de Alzheimer. "A sensação que eu tenho é que é tem sido muito amplificado, pois é nichado, o uso é pequeno. Faz parte de um fenômeno das redes de transformar aquilo que é pequeno, mas chama muito atenção, em uma coisa que seria real e complexa, como se estivessem bebês reborns por todos os lados nas praças, nos shopping centers. Eu vou no shopping center regularmente e nunca vi um bebê reborn", conta o psiquiatra. Segundo Stangler, o caso da agressão a uma criança em Belo Horizonte tem algo de "amoral", mas também pode apontar para uma intolerância que tem sido presente no meio social com a difusão das redes sociais. "Hoje em dia as pessoas estão muito mais afloradas. É uma sociedade dos extremos, em que é oito ou oitenta, extrema direita ou esquerda, gosta ou odeia. Não existe meio-termo mais", explica. O acesso ao celular, com todos os estímulos possíveis no alcance dos dedos, diz o psiquiatra, afeta o sistema límbico, que é responsável pela sensação de prazer, desregulando a produção de dopamina, que é responsável pela sensação de recompensa. Segundo ele, males como o déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), transtorno explosivo intermitente e até esquizofrenia estão diretamente ligadas a distúrbios relacionados à produção dessa substância. "Talvez exista algo de cunho ético e moral para uma pessoa agredir um bebê real achando que é reborn. Mas também há algo de ser intolerante, não aceitar as diferenças, o que aponta também para essa questão", acrescenta Stangler. "O mundo não está cheio de bebê reborn. São bolhas. A gente amplifica porque dá visualização, gera like, gera curtida e gera estranhamento", complementa. "Parece que estamos vivendo um fenômeno atrás do outro. As coisas são fugazes, daqui a três meses, provavelmente não vamos estar falando mais disso, e sim de outro assunto", conclui.